O Barbeiro Filósofo
Leitor
amigo, se alguma vez te aconteceu observar-te no espelho durante um corte de
cabelo, saberás que não há exercício mais cruel para a vaidade nem mais
instrutivo para a filosofia. Foi o que experimentou Antônio naquela tarde de
terça-feira, quando decidiu entregar-se inteiramente às mãos do barbeiro
Joaquim.
Digo
entregar-se inteiramente porque não se tratava de mero corte: Antônio queria-se
raspado, limpo, despojado de toda a cabeleira grisalha que lhe cobria a cabeça
e de toda a barba que lhe sombreava o rosto. "Máquina zero", disse ao
barbeiro, "cabelo e barba. Quero recomeçar."
Ora, quem
disse que se recomeça raspando a cabeça? Mas deixemos as filosofias para depois
e sigamos o nosso homem.
Joaquim, que
tinha a experiência de quem já transformara mil rostos, sorriu com aquela
superioridade discreta dos profissionais que sabem mais do ofício do que os
clientes. Ligou a máquina — instrumento que zunindo parecia uma cigarra
metálica — e começou a obra.
O primeiro a
desaparecer foi o cabelo. Antônio, que até então se julgava conhecer, viu
surgir no espelho um desconhecido de cabeça rapada, de feições mais duras,
quase monacais. "Quem é este?", perguntou-se, e o homem careca
pareceu retribuir a pergunta com igual curiosidade. Estranha coisa: conhecermo-nos
de fora para dentro, como se fôssemos vizinhos de nós mesmos.
Passou então
a máquina à barba. Primeiro cortou as laterais, deixando apenas o cavanhaque e
o bigode, e eis que um segundo personagem se apresentou no espelho. Este tinha
ares de intelectual, talvez de poeta melancólico ou de professor aposentado.
Antônio quase se afeiçoou a esta nova versão de si mesmo, que lhe parecia mais
interessante que a anterior. Mas a máquina é implacável, e não consulta as
nossas preferências.
Desapareceu o
cavanhaque, ficou o bigode. Terceira personalidade: agora surgia um homem de
aparência galante, com ares de quem já conheceu o mundo. O bigode dava-lhe um quê de conquistador
aposentado, de quem guarda memórias que não conta aos netos.
Antônio quase
protestou quando viu Joaquim erguer novamente a máquina. Tinha-se afeiçoado
àquele homem-bigode. Mas que protesto vale contra a lógica de uma decisão
tomada?
E então,
raspado o último pelo, apareceu finalmente... ele mesmo.
Não digas,
leitor, que sempre foi ele mesmo. Enganas-te. Era e não era. Era o Antônio
essencial, despido dos ornamentos que o tempo lhe havia acrescentando como quem
acumula móveis numa casa. Cada ruga mostrava-se agora sem disfarce, cada marca
da idade se exibia sem a cortesia dos pelos que as suavizavam. E, coisa
curiosa, este Antônio despojado parecia-lhe mais verdadeiro que todos os
outros.
"Os
óculos", disse Joaquim, devolvendo-lhe a armação.
Antônio pôs
os óculos e piscou. O homem do espelho piscou também, e foi como se se cumprimentassem
após longa ausência. Conheces esta sensação, leitor? É como reencontrar um
livro antigo numa estante e descobrir que o tinhas esquecido justamente na
melhor página.
"Pronto",
disse Joaquim. "Voltemos ao trabalho."
Pagou Antônio
e saiu. Na rua, sentiu o sol diferente no rosto descoberto. E ao passar por uma
vitrine, vislumbrou seu reflexo e sorriu — não para o que via, mas para o que
havia descoberto: que por baixo de todas as máscaras que a vida nos vai pondo,
permanece sempre o mesmo homem, à espera de ser redescoberto.
Simples
assim, leitor. Às vezes basta uma máquina de barbeiro para nos ensinar o que
não aprendemos em anos de filosofia.
"O Barbeiro Filósofo" por Ingo Dietrich Söhngen © 2025.
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