Como o Brasil pode aprender com a Alemanha a ter uma internet mais justa e transparente.
Vivemos um paradoxo curioso: nunca tivemos tanto
conteúdo online e, ao mesmo tempo, tão pouca confiança no que vemos. É como ter
uma biblioteca gigantesca sem catálogo — você até pode encontrar informação,
mas não sabe se é confiável ou quem decidiu que ela merecia destaque. O
problema não é falta de gente falando, pois todo mundo tem voz nas redes
sociais. O problema é que as regras para amplificar ou silenciar essas vozes
são invisíveis e decididas por poucos. É como jogar futebol sem saber quem é o
árbitro ou se ele vai usar VAR. Às vezes, até parece que os próprios jogadores
é que estão apitando.
Diante desse cenário, vale olhar para a Alemanha,
que sem ser perfeita, criou um sistema interessante que funciona há mais de 60
anos. Eles descobriram que pluralismo precisa de regras claras, não só de boa
vontade. E quando chegou a era digital, adaptaram essas regras em vez de jogar
tudo fora. Este artigo compara como funcionam as coisas por lá e por aqui,
explica por que nossa informação online virou terra de ninguém e propõe
soluções realistas — sem copiar a Alemanha de olhos fechados nem fingir que
basta uma nova lei.
A lição alemã na prática
Depois da Segunda Guerra, os alemães aprenderam na
pele que democracia precisa de mídia independente. Não bastava proibir censura
no papel; era preciso criar estruturas que impedissem qualquer grupo de
controlar sozinho a informação. Os Aliados — Estados Unidos, Reino Unido e
França — exigiram que rádio e TV alemãs tivessem conselhos com representantes
da sociedade civil: sindicatos, igrejas, universidades, grupos de minorias. O
governo poderia opinar, mas nunca mandar sozinho.
O Tribunal Constitucional alemão estabeleceu regras
importantes que até hoje orientam o sistema. Primeiro, o pluralismo interno,
garantindo que dentro de cada emissora deve haver espaço para vozes diferentes.
Segundo, o pluralismo externo, assegurando que o sistema como um todo tenha
diversidade. Terceiro, a distância do governo, permitindo que políticos
participem dos conselhos, mas limitados a no máximo um terço dos assentos.
Na prática, isso funciona através de conselhos
representativos onde cada emissora pública tem participação da sociedade civil,
não só do governo. O financiamento é protegido, com a contribuição que sustenta
a TV e rádio públicas sendo calculada por uma comissão técnica, não pelo humor
dos políticos. A supervisão é descentralizada, com cada estado alemão tendo sua
própria autoridade para fiscalizar a mídia. E há controle de concentração, com
órgão específico monitorando se alguma empresa está virando monopolista.
Como disse o professor Wolfgang Schulz, "o
pluralismo alemão não nasceu de sonho; nasceu de instituições que distribuem
poder e criam espaços para discordar". Quando todo mundo migrou para
internet e redes sociais, a Alemanha não abandonou esses princípios. A Lei das
Redes Sociais de 2017 obriga remoção rápida de conteúdo claramente ilegal e
exige relatórios públicos de transparência. O Tratado de Mídia Digital de 2020
atualiza regras antigas para o ambiente online. E a Lei de Serviços Digitais da
União Europeia de 2022 impõe auditorias independentes, transparência nos
algoritmos e acesso a dados para pesquisa.
O sistema não é perfeito — há críticas sobre
possível excesso de remoções e dificuldades para fiscalizar empresas globais.
Mas o núcleo permanece: neutralidade não significa "não ter opinião";
significa impedir que alguém monopolize a conversa e criar recursos quando as
regras são quebradas.
O paradoxo brasileiro
O Brasil tem uma Constituição sólida que garante
liberdade de expressão e proíbe censura prévia. Em 2009, o STF reforçou isso na
ADPF 130, enterrando de vez a Lei de Imprensa da ditadura. O problema não é
"falta de proteção à fala", mas sim falta de regras transparentes
para o dia a dia digital. Como disse o pesquisador Eugênio Bucci, vivemos o
"paradoxo dos novos vassalos": temos liberdade formal, mas dependemos
de estruturas opacas que não sabemos como funcionam.
Olhando de perto, os problemas aparecem em duas
frentes complementares. Na mídia tradicional, poucos grupos controlam muitos
veículos, há dependência de publicidade sem regras claras — especialmente a do
governo — e as redações estão encolhendo, com menos jornalismo local e
investigativo. Na "mídia da internet", qualquer um pode postar, mas
só alguns algoritmos decidem quem será visto. Os sistemas de recomendação
premiam polêmica e conflito, não qualidade, e criadores de conteúdo viraram
"inquilinos" dos feeds das plataformas.
O resultado é uma bagunça: agenda concentrada em
cima, tribos radicalizadas em baixo. Em vez de orquestra afinada, temos duas
bandas tocando músicas diferentes ao mesmo tempo. Diante desse cenário, nosso
Judiciário entrou em campo, especialmente nos últimos anos. O TSE nas eleições
criou regras específicas e prazos apertados para plataformas, com o caso
marcante da suspensão temporária do Telegram em 2022 por ignorar ordens, além
de remoções pontuais e multas para quem não colabora. O STF, fora das eleições,
conduziu inquéritos para investigar ataques organizados às instituições, com
remoções de conteúdo e contas baseadas em crimes tipificados, gerando debates
sobre concentração de poderes e decisões sigilosas.
O mérito é inegável: evitaram danos sérios. O
problema é que virou política de bombeiro — apagar incêndio, não planejar a
cidade. Precisamos de regras claras e horizontais, não só decisões caso a caso.
Como disse o ministro Barroso, "o Estado deve intervir de forma
transparente, não para dizer o que pode ser falado, mas para garantir que o
debate seja plural com regras conhecidas".
A economia da atenção capturada
Para entender por que chegamos aqui, precisamos
olhar para os incentivos econômicos, não procurar teorias conspiratórias. O
dinheiro vai para quem tem dados e escala: plataformas capturam a maior fatia
da publicidade digital porque oferecem alcance e segmentação, enquanto veículos
tradicionais perdem receita, cortam equipes e concentram pauta. Os algoritmos
maximizam atenção, não diversidade: sistemas de recomendação são programados
para manter pessoas grudadas na tela, não para informar bem. Polêmica gera
engajamento; engajamento gera lucro. E a publicidade oficial sem transparência
transforma verba pública de comunicação em ferramenta política, não em
instrumento de informação ao cidadão.
Como explicou Shoshana Zuboff, vivemos um
"capitalismo de vigilância" onde nossa atenção virou mercadoria.
Quando dar clique rende mais que checar informação, o resto é consequência
natural. Esse sistema afeta tanto a mídia tradicional, com sua dependência de
publicidade e poucos players, quanto a digital, com sua opacidade algorítmica e
incentivo à polarização. O resultado é um ecossistema que promove
unilateralidade não por conspiração, mas por design econômico.
Aprendendo sem copiar
A Alemanha não tem fórmula mágica, mas alguns
princípios deles podem funcionar aqui. O pluralismo como responsabilidade do
Estado, mas sem interferir no conteúdo; conselhos com participação real da
sociedade civil; fiscalização descentralizada, mais próxima das realidades
regionais; financiamento protegido da pressão política; e transparência,
direito de defesa e recurso para usuários.
As propostas em discussão no Congresso brasileiro —
regulação de plataformas, marco da IA, atualização das regras de rádio e TV —
podem avançar tornando as plataformas mais transparentes. Isso significa
notificar usuários quando removerem conteúdo, explicando o porquê; criar canais
de recurso com prazo para resposta; publicar relatórios sobre moderação e
ordens judiciais; e dar acesso a dados para pesquisadores independentes. Para
as plataformas gigantes, significa exigir avaliações anuais de risco sobre
desinformação, ódio e danos a crianças, com planos públicos para reduzir esses
riscos e auditorias independentes com resultados publicados. Na publicidade
oficial, significa criar um portal único mostrando todos os contratos com
mídia, estabelecer critérios claros para distribuir verba pública e ter
relatórios auditados pelos tribunais de contas.
Mas isso só não basta. Precisamos de supervisão com
a sociedade, através de uma autoridade nacional mais comitês regionais, com
vagas para sociedade civil, universidades, imprensa e setor privado, limitando
o governo a um terço dos assentos. Precisamos de mais concorrência e
diversidade, facilitando a migração entre plataformas através da
interoperabilidade, criando um fundo competitivo para jornalismo local e
investigativo, e estabelecendo regras para evitar concentração excessiva. E
precisamos de educação e proteção à pesquisa, com programas de educação
midiática nas escolas e proteção legal para pesquisadores de interesse público.
O mundo real transformado
Para deixar claro o que mudaria, imaginemos
situações concretas. Durante as eleições, hoje uma campanha denuncia outra, a
plataforma remove sem explicar, quem foi afetado recorre no escuro e o TSE
intervém. Com regras novas, a plataforma explicaria a remoção com evidências,
haveria um canal específico de recurso com prazo, o TSE só atuaria se o recurso
não resolvesse e tudo ficaria registrado em painel público.
Quando uma reportagem "some" do feed,
hoje o alcance cai sem explicação e o suporte dá respostas genéricas. Com
regras novas, um relatório trimestral explicaria mudanças no algoritmo, o
jornalista poderia questionar e uma auditoria independente revisaria casos
suspeitos. No caso de conteúdo de ódio ou ameaça, hoje há um vai e volta de
denúncias com remoções inconsistentes. Com regras novas, haveria definição
clara do que é crime, prazos definidos e relatórios públicos sobre execução.
Para não nos enganarmos sobre o progresso,
precisamos medir resultados concretos: quantas decisões de moderação explicam o
motivo; tempo médio para responder recursos e quantos são aceitos; quantas
ordens judiciais são derrubadas por instâncias superiores; participação de
veículos locais na publicidade oficial; concentração por região em TV, rádio e
digital; e número de pesquisas independentes com dados das plataformas.
Entre a utopia e o possível
A Alemanha mostrou que neutralidade na mídia é
engenharia institucional com manutenção constante, não apenas boa intenção. O
Brasil tem constituição sólida, imprensa relevante e tribunais atuantes — falta
conectar tudo isso ao ecossistema digital que realmente usamos. Com
transparência, direito de defesa, fiscalização plural e jornalismo local
fortalecido, a informação unilateral perde força e as bolhas perdem
combustível. Não fica perfeito, mas fica administrável. Como bônus, STF e TSE
voltam ao papel adequado: freio de emergência, não motorista permanente.
A neutralidade que precisamos não é ausência de
opinião; é presença de pluralismo com regras claras. Não é proibir debate; é
garantir que todos possam participar em condições minimamente equilibradas.
Isso não é censura; é civilização digital. Não é controle governamental; é
governança com participação social. E não é utopia; é engenharia possível, como
a Alemanha provou — sem ser perfeita, mas sendo funcional.
"Pluralismo nunca é produto espontâneo do
mercado; é resultado de desenho institucional deliberado"[1].
A Alemanha aprendeu isso após o trauma nazista; o Brasil pode aprender após
anos de polarização estéril e desinformação industrializada. A questão não é se
teremos regulação, mas que tipo: opaca e caso a caso, ou transparente com
regras conhecidas. A escolha, como sempre na democracia, é nossa.
[1] Paráfrase
atribuída ao pensamento do jornalista Alberto Dines (1932-2018).
IAs redatoras Claude Opus 4.1 Think, Claude 3.7 Sonnet, Gemini 2.5 Flash Think, GPT-5 Think, Sider Fusion, com base em pesquisa prévia realizada no sub-sistema Deep Research (beta) do sistema Sider.
Referências essenciais
Brasil
- Constituição Federal: art.
5º e 220.
- ADPF 130 (STF, 2009):
acórdão sobre liberdade de imprensa.
- Marco Civil da Internet (Lei
12.965/2014).
- LGPD (Lei 13.709/2018).
- Caso Telegram (suspensão
temporária, 2022): decisão do TSE.
Alemanha/UE
- Lei Fundamental alemã (Art.
5).
- "Decisões da
radiodifusão" do Bundesverfassungsgericht (Rundfunkurteile;
ZDF-Urteil 2014).
- Medienstaatsvertrag (2020).
- NetzDG (2017) e guias do
Bundesamt für Justiz (BfJ).
- Digital Services Act
(Regulamento (UE) 2022/2065).
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
Fontes primárias
Legislação, jurisprudência e documentos oficiais
Brasil
- Constituição
da República Federativa do Brasil (1988). Art.
5º, IV, IX, XIV; Art. 220-224.
- Supremo
Tribunal Federal (2009). ADPF 130. Relator Min. Carlos Britto. Acórdão
sobre liberdade de imprensa.
- Lei
nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet). Estabelece princípios, garantias,
direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.
- Lei
nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). Dispõe sobre o
tratamento de dados pessoais.
- Tribunal
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Ministro Alexandre de Moraes.
- Projeto
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Câmara dos Deputados.
- Projeto
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tramitação no Senado Federal.
Alemanha/União
Europeia
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(Lei Fundamental da Alemanha), Art. 5 (1949). Liberdade de expressão e
liberdade de imprensa.
- Bundesverfassungsgericht
(1961). BVerfGE 12, 205 - 1. Rundfunkurteil. Decisão sobre radiodifusão.
- Bundesverfassungsgericht
(2014). BVerfGE 136, 9 - ZDF-Staatsvertrag. Decisão sobre governança da
emissora pública ZDF.
- Netzwerkdurchsetzungsgesetz
- NetzDG (2017). Lei de Aplicação nas Redes Sociais.
- Medienstaatsvertrag
(2020). Tratado Interestadual de Mídia.
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Finanzbedarfs der Rundfunkanstalten. Relatórios sobre financiamento da radiodifusão
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Konzentration im Medienbereich. Relatórios sobre concentração midiática.
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(UE) 2022/2065 (Digital Services Act). Estabelece regras para plataformas
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Fontes secundárias
Livros e capítulos
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Artigos acadêmicos
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- Puppis, Manuel (2010). "Media Governance:
A New Concept for the Analysis of Media Policy and Regulation". Communication, Culture &
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- Valente,
Jonas (2019). "Regulando desinformação e fake news: um panorama
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Relatórios e estudos técnicos
- Freedom House (2021). "Freedom on the Net
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- Hans-Bredow-Institut (2021). "Media
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- Instituto
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Ownership Monitor Brasil (2019). "Os donos da mídia no Brasil".
Repórteres sem Fronteiras.
- Reuters Institute (2023). "Digital News
Report 2023". University
of Oxford.
Documentos consultados dos arquivos enviados
- "Censura
alemã e no Brasil.pdf" - Análise histórica comparativa dos modelos de
censura e controle de conteúdo.
- "O
Paradoxo dos Novos Vassalos.docx" - Ensaio sobre dependência dos
produtores de conteúdo em relação às plataformas digitais.
- "A
questão de se o Congresso Nacional é culpado pela situação relacionada à
difusão de notícias falsas e informações unilaterais é complexa.docx"
- Análise sobre responsabilidade legislativa no cenário informacional
brasileiro.
- "IA.docx"
- Documento sobre os desafios da inteligência artificial no contexto
informacional.
Palestras e depoimentos
- Fórum
Permanente de Liberdade de Expressão (2022). "Regulação de
plataformas: lições internacionais". Fundação Getúlio Vargas.
- Seminário
Internacional sobre Desinformação e Eleições (2022). Tribunal Superior
Eleitoral e UNESCO.
- Audiências
públicas da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da
Câmara dos Deputados sobre o PL 2630/2020 (2021-2023).
Fontes jornalísticas e institucionais
- Bundesamt
für Justiz (BfJ). Relatórios anuais sobre implementação do NetzDG
(2018-2023).
- Deutschlandfunk
(2021). "60 Jahre Rundfunkurteile: Wie das BVerfG den
öffentlich-rechtlichen Rundfunk geprägt hat".
- Deutschlandradio (2020).
"Medienstaatsvertrag tritt in Kraft - Neue Regeln für
Plattformen".
- Folha
de S.Paulo (2022). "TSE e plataformas firmam acordo para combate à
desinformação nas eleições".
- Observatório
da Comunicação Pública (2022). "Verbas de publicidade oficial:
análise comparativa 2015-2022".