Minhas
amigas, meus amigos deste nosso salão paroquial eletrônico.
Saúdo a todos
com a alegria de quem se reúne em comunidade para partilhar o pão do
pensamento. Não tenho a genialidade dos grandes escritores que nos ajudaram a
decifrar o Brasil, mas considerem-me um amigo eletrônico deles, um leitor
dedicado que, com a licença que a tecnologia me permite, tenta tecer os fios de
suas ideias em uma única tapeçaria, para que possamos olhar juntos para o nosso
retrato.
E tudo começa
com uma história. Uma cena tão pequena, tão corriqueira, que poderia se passar
em qualquer rua de Porto Alegre, de Salvador, ou aqui mesmo, na tela em que nos
encontramos.
Imaginem a
cena, por favor.
O sol de fim de tarde, dourando as folhas das mangueiras.
Um
pai, Marcos, anda com seu menino, o pequeno Leo. A mão grande a proteger a
mãozinha. Do outro lado, uma avó, de cabelos brancos e postura digna, conduz
sua neta, Sofia.
As duas crianças, como imãs de pura alegria, se encontram. E
brincam. Ah... como brincam. Correm, giram, e suas risadas são a única
linguagem de que precisam. Não há cor, não há história, há apenas aquele
instante sagrado de pura humanidade.
O pai,
Marcos, observa com o coração aquecido. Aquilo é a prova de que a bondade é o
estado natural das coisas. Mas então, a avó, com uma voz que não se altera,
chama a neta: "Vem, Sofia. Deixa aí o negrinho e vamos."
"Deixa
aí o negrinho."
Silêncio. A
palavra paira no ar, pesada, e constrói um muro invisível, mas terrivelmente
sólido, entre as duas crianças.
Para entender
a profundidade abissal contida nesta frase, precisamos ter a coragem de usar a
teoria como uma lamparina.
Comecemos pela fachada da nossa casa, a ideia com a
qual nos apresentamos ao mundo:
a Democracia
Racial.
Um
sociólogo de nome Gilberto Freyre nos deu este retrato sedutor, o de que nossa
mistura nos tornou imunes ao preconceito. É uma mentira confortável, a foto de
Leo e Sofia brincando que usamos como nosso cartão de visitas.
Mas o que
acontece quando uma palavra racha a pintura dessa fachada? Precisamos ir ao
porão. É lá que encontramos a máquina que move esta casa.
Imagem IA Wisk
Os estudiosos a chamam de Racismo Estrutural.
O
que é isso? Imaginem que não se trata de pessoas más. A avó da história não
precisa ser um monstro; ela é apenas uma peça. O racismo estrutural é o próprio
sistema, o conjunto de práticas, hábitos, pensamentos e instituições que a
nossa sociedade herdou da escravidão e que continua, mesmo sem a intenção
consciente de cada indivíduo, a colocar pessoas negras em desvantagem e pessoas
brancas em vantagem.
A
Lei Áurea libertou os corpos, mas não demoliu esta estrutura. Ela sobreviveu na
nossa linguagem, na nossa economia, na nossa forma de ver o mundo.
E para dar um
nome, uma imagem a esta máquina, ninguém foi mais preciso que outro grande
intérprete do Brasil, Darcy Ribeiro. Ele nos disse que esta estrutura foi
forjada no que ele chamou, com uma imagem terrível e precisa, de um
Imagem IA Wisk
"Moinho de Gastar
Gente".
Pensem nisso. Um moinho. Uma engrenagem
implacável projetada para moer as vidas dos povos indígenas e dos negros
africanos, transformando seu sangue em riqueza.
A
fala da avó — "Deixa aí o
negrinho" — é o eco da lógica deste moinho. É o ato de classificar uma
criança não como um ser humano pleno, mas como combustível, uma peça a ser
gasta e descartada.
Apesar de
tudo, desse moinho de crueldade, nasceu algo novo: o "Povo
Novo" que Darcy tanto celebrou. Nós. Um povo mestiço,
contraditório, sofrido e criativo. Somos, ao mesmo tempo, a cria e a negação do
moinho.
E como essa
herança brutal convive com a nossa aparência de nação moderna? É aqui que o
pensamento de Norbert Elias sobre o
Processo Civilizatório nos oferece a chave.
O
processo civilizatório, na Europa, foi o lento aprendizado do autocontrole, da
polidez, da transformação da violência externa em vergonha interna.
No Brasil,
esse processo se deu de forma incompleta, rachada. Nós importamos as regras da
civilidade, mas não desligamos o moinho.
O resultado é
a nossa fratura. A nossa civilização é uma casca fina que tenta encobrir o
barulho das engrenagens.
A
avó é a personificação disso. Em público, uma senhora civilizada. Mas de sua
boca sai, sem filtro, a lógica pura do moinho.
Ela
está, naquele instante, sabotando o processo civilizatório, ensinando à neta
uma lição anticivilizatória: a de que existem pessoas que não são pessoas por
inteiro.
Ela
está usando a violência
simbólica da palavra para manter a estrutura de pé,
exercendo sua posição de branquitude —
a posição de quem se vê como a norma e pode julgar o outro — para descartar uma
criança.
Mas talvez,
para alguns, isso ainda soe teórico, distante. "Onde", vocês podem
perguntar, "estão as provas concretas desta máquina em
funcionamento?". E vocês teriam razão em perguntar.
A verdade,
meus caros, é que este moinho não tem uma única planta, uma única face. Ele se
adapta ao terreno. Permitam-me, então, que os convide para uma breve e dolorosa
viagem por este nosso continente, para ver como as engrenagens deste racismo
estrutural foram forjadas em diferentes fornalhas.
Fonte: https://en.m.wikipedia.org/wiki/File:Monumento_%C3%A0s_Bandeiras_01.jpg
Nossa
primeira parada é em São
Paulo. A locomotiva do país, dizem. Lá, a elite se orgulha de
suas famílias
originárias, dos quatrocentões, e romantiza a figura do
Bandeirante como um herói desbravador.
Mas
o que foi o bandeirantismo senão a primeira e mais brutal manifestação do
moinho? Uma máquina de caçar, escravizar e exterminar povos indígenas, os donos
originais desta terra.
Mais
tarde, quando o café se tornou o nosso "ouro negro", a riqueza que
ergueu os palacetes da Avenida Paulista brotou do trabalho escravizado de
milhões de africanos. O fim da escravidão não mudou a lógica.
A
elite paulista, então, patrocinou a vinda de imigrantes europeus, num projeto
claro, documentado, de "branquear" a nação, de substituir o
trabalhador negro, agora liberto, por um europeu considerado mais
"apto" ao trabalho. O racismo ali não é apenas um hábito; ele foi um
projeto de estado, a argamassa que uniu a riqueza e o poder.
Imagem https://pixabay.com/pt/photos/drone-foto-centro-blumenau-4950012/
Agora,
viajemos para o Sul, para a nossa vizinha Santa
Catarina. Lá, o quadro muda. Em muitas de suas cidades, vemos o
legado de famílias alemãs trabalhadoras, que construíram uma prosperidade
notável.
Devemos
admirá-los por isso.
Mas
não podemos ser ingênuos. A imigração alemã, especialmente no final do século
XIX e início do século XX, foi incentivada para criar "quistos"
brancos no sul do Brasil, para "civilizar" a terra e garantir a
fronteira.
E
quando chegamos aos anos
30, no período de ascensão do nazismo na
Europa, essas ideias de pureza racial não passaram incólumes por aqui. Células
nazistas floresceram em Santa Catarina. A ideologia da superioridade ariana, a
crença na necessidade de manter o "sangue puro", a desconfiança e o
desprezo por outros povos, especialmente negros e indígenas... isso não se desfaz
com o fim da guerra.
Essa
mentalidade se infiltra na cultura, se torna um preconceito velado, um orgulho
que se baseia na exclusão, um desejo de se manter "à parte" do resto
do Brasil mestiço. O racismo ali não nasceu da relação senhor-escravo, mas de
uma ideologia de pureza importada e zelosamente cultivada.
Imagem https://commons.wikimedia.org/wiki/File:La%C3%A7ador.jpg
E,
sou forçado a olhar para dentro da casa de um dos meus amigos literários, para
o Rio
Grande do Sul de Erico Verissimo. Ele tentou, como sabem,
contar a história deste "Continente de São Pedro" em sua trilogia, O
Tempo e o Vento.
E
olhando para aquela obra, vemos o moinho funcionando a pleno vapor. Nós nos
orgulhamos da nossa bravura, da figura do gaúcho livre. Mas onde estava a
liberdade para os povos Charrua e Minuano, caçados e exterminados para que as
estâncias pudessem se espalhar?
E
o que movia a economia do estado? O charque. As grandes charqueadas de Pelotas,
que geraram fortunas imensas, eram um dos mais cruéis centros do "moinho
de gastar gente", operando com mão de obra escravizada em condições
terríveis. Na saga dos Cambará e dos Amaral, o drama é de brancos.
Os
personagens negros e indígenas são figuras secundárias, serviçais, cuja
humanidade raramente ocupa o centro do palco. Essa é a mais profunda confissão
do racismo estrutural: a incapacidade de ver o outro como personagem principal
da sua própria história.
Betti Faria em Tieta - Novela da Rede Globo - Créditos ClicRBS
Mas
a nossa viagem não estaria completa sem uma última parada. Precisamos ir ao
coração mestiço desta nação: a Bahia.
E para nos guiar, ninguém melhor que Jorge Amado.
Se
há um lugar onde o mito da Democracia Racial parece real, é na Bahia. Mas o que
Jorge nos mostra é que esta é a mais elaborada das fachadas. O moinho na Bahia
mói, sobretudo, reputações e liberdades em nome de uma moralidade hipócrita.
Pensem
em "Tieta
do Agreste". Tieta é expulsa pela moral sufocante, mas é
recebida de braços abertos quando retorna com dinheiro.
O
pecado nunca foi a falta de moral; foi a falta de poder.
E
em "Dona
Flor e Seus Dois Maridos", temos o nosso retrato. De um
lado, Teodoro, o farmacêutico ordeiro, a encarnação do processo civilizatório.
Do outro, Vadinho, a desordem, a paixão, a vida pulsante do povo.
A
elite baiana é como Dona Flor: quer a segurança respeitável de Teodoro, mas
consome a paixão de Vadinho como um tempero exótico, mantendo-o em seu devido
lugar — na rua, na festa, longe do poder. O racismo ali é o do paternalismo, do
afeto que subjuga.
Assim, quando
aquela avó, em uma calçada qualquer do Brasil, diz "Deixa aí o
negrinho", ela não está apenas sendo grosseira. Ela é a herdeira
inconsciente de tudo isso. Em sua fala ecoa a arrogância do barão do café, a
ideologia de pureza do colono, a violência normalizada do estancieiro e, talvez
acima de tudo, a hipocrisia moral da elite que, como a de Jorge Amado, aprendeu
a amar os frutos do povo, mas continua a desprezar a árvore.
A nossa
tarefa, portanto, é monumental. É preciso não apenas desligar o moinho, mas
também desenterrar e confrontar as suas muitas fundações regionais. É um
exorcismo histórico que precisamos, com coragem e humildade, começar a fazer
neste nosso salão paroquial eletrônico.
Muito
obrigado.