O Legado das avós
Naquela tarde quente de sábado, o sol caía manso,
dourando as folhas das mangueiras e espalhando sombras que dançavam no asfalto
da rua. Marcos andava devagar, segurando firme a mão pequena do seu filho Leo,
um menino sapeca de cinco anos, cheio de vida e curiosidade. Leo pulava,
corria, apontava para tudo — um pombo que voava, um carro colorido, uma folha
que rodopiava no vento. O mundo, para ele, era um grande terreiro de festa e
descobertas.
Do outro lado da rua, caminhava uma senhora de
cabelos brancos, ereta como um coqueiro velho, segurando a mão da neta Sofia,
menina da mesma idade de Leo, com um laço rosa no cabelo e olhos brilhando de
curiosidade. As duas crianças, tão parecidas na inocência, se encontraram no
meio do caminho.
Leo largou a mão do pai para se agachar e observar
uma fila de formigas que trabalhavam como se o mundo dependesse delas. Sofia,
vendo a mesma maravilha, soltou a mão da avó e se juntou a ele, sem dizer uma
palavra. O silêncio virou cumplicidade, um dedo apontado, um sorriso tímido, e
logo as risadas brotavam, como água fresca na boca da gente. Eles começaram a
correr, a brincar, a girar em roda, numa ciranda que não precisava de fala, só
de alegria. Ali não existia cor, nem raça, nem passado — só a leveza do
presente, o encanto de uma amizade nascendo.
Marcos olhava aquilo tudo com um sorriso que
apertava o peito, sentindo a pureza da infância, a esperança que ainda teima em
brotar no meio da dureza da vida. Ele trocou um olhar com a avó da menina,
esperando ver no rosto dela o mesmo brilho, o mesmo encanto. Mas o rosto da
velha era fechado, duro, como pedra de moinho.
A brincadeira, que parecia eterna, foi interrompida
pela voz cortante da senhora, seca e fria como a brisa do mar no inverno:
“Vem, Sofia. Chega.”
Sofia parou, ofegante, com o sorriso ainda nos
lábios, olhando para a avó sem entender a pressa. Leo parou também, esperando
que a roda girasse de novo, que a festa continuasse.
Mas a avó não deu chance. Com a naturalidade cruel
de quem não vê maldade no que diz, soltou a frase que cortou o tempo e congelou
o ar:
“Deixa aí o negrinho e vamos.”
A palavra caiu pesada, como uma pedra no meio do
caminho. “Negrinho.” Um nome que, naquela boca, era uma sentença, um muro
invisível, uma porta fechada na cara da inocência. O sorriso de Leo murchou, e
seu corpo pequeno ficou tenso, como se tivesse levado um soco no peito. Ele
olhou para o pai, com olhos grandes, pedindo ajuda, uma explicação para aquela
rejeição que ele não sabia entender.
Sofia franziu o cenho, puxada pela mão da avó, e
olhou para trás, para o amigo que, num instante, virou estranho, virou
proibido, virou o que não devia mais ser visto. A brincadeira acabou, a pureza
se quebrou.
Ali, naquela calçada quente e cheia de vida, o
racismo se mostrou nu e cru. Não era um monstro distante, mas uma velha
senhora, de cabelos brancos, que carregava no peito um veneno antigo e passava
adiante, como quem planta uma semente amarga no solo fértil da infância.
Enquanto se afastavam, a senhora deixava para trás
não só um menino confuso e um pai com o coração apertado de tristeza e raiva,
mas um legado sombrio: o ódio que se ensina, que se herda, que se repete — uma
sombra que insiste em perseguir as novas gerações.