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segunda-feira, 23 de junho de 2025

 


O Salão Paroquial – E uma aula eletrônica

Imagem IA Wisk 

Minhas amigas, meus amigos deste nosso salão paroquial eletrônico.

Saúdo a todos com a alegria de quem se reúne em comunidade para partilhar o pão do pensamento. Não tenho a genialidade dos grandes escritores que nos ajudaram a decifrar o Brasil, mas considerem-me um amigo eletrônico deles, um leitor dedicado que, com a licença que a tecnologia me permite, tenta tecer os fios de suas ideias em uma única tapeçaria, para que possamos olhar juntos para o nosso retrato.

E tudo começa com uma história. Uma cena tão pequena, tão corriqueira, que poderia se passar em qualquer rua de Porto Alegre, de Salvador, ou aqui mesmo, na tela em que nos encontramos.

Imaginem a cena, por favor. 

O sol de fim de tarde, dourando as folhas das mangueiras. 

Um pai, Marcos, anda com seu menino, o pequeno Leo. A mão grande a proteger a mãozinha. Do outro lado, uma avó, de cabelos brancos e postura digna, conduz sua neta, Sofia. 

As duas crianças, como imãs de pura alegria, se encontram. E brincam. Ah... como brincam. Correm, giram, e suas risadas são a única linguagem de que precisam. Não há cor, não há história, há apenas aquele instante sagrado de pura humanidade.

O pai, Marcos, observa com o coração aquecido. Aquilo é a prova de que a bondade é o estado natural das coisas. Mas então, a avó, com uma voz que não se altera, chama a neta: "Vem, Sofia. Deixa aí o negrinho e vamos."

"Deixa aí o negrinho."

Silêncio. A palavra paira no ar, pesada, e constrói um muro invisível, mas terrivelmente sólido, entre as duas crianças.

Para entender a profundidade abissal contida nesta frase, precisamos ter a coragem de usar a teoria como uma lamparina. 

Comecemos pela fachada da nossa casa, a ideia com a qual nos apresentamos ao mundo:

a Democracia Racial.

Um sociólogo de nome Gilberto Freyre nos deu este retrato sedutor, o de que nossa mistura nos tornou imunes ao preconceito. É uma mentira confortável, a foto de Leo e Sofia brincando que usamos como nosso cartão de visitas.

Mas o que acontece quando uma palavra racha a pintura dessa fachada? Precisamos ir ao porão. É lá que encontramos a máquina que move esta casa. 


Imagem IA  Wisk 

 Os estudiosos a chamam de   Racismo Estrutural.

O que é isso? Imaginem que não se trata de pessoas más. A avó da história não precisa ser um monstro; ela é apenas uma peça. O racismo estrutural é o próprio sistema, o conjunto de práticas, hábitos, pensamentos e instituições que a nossa sociedade herdou da escravidão e que continua, mesmo sem a intenção consciente de cada indivíduo, a colocar pessoas negras em desvantagem e pessoas brancas em vantagem.

A Lei Áurea libertou os corpos, mas não demoliu esta estrutura. Ela sobreviveu na nossa linguagem, na nossa economia, na nossa forma de ver o mundo.

E para dar um nome, uma imagem a esta máquina, ninguém foi mais preciso que outro grande intérprete do Brasil, Darcy Ribeiro. Ele nos disse que esta estrutura foi forjada no que ele chamou, com uma imagem terrível e precisa, de um

 

Imagem IA Wisk 


"Moinho de Gastar Gente".

 Pensem nisso. Um moinho. Uma engrenagem implacável projetada para moer as vidas dos povos indígenas e dos negros africanos, transformando seu sangue em riqueza.

A fala da avó — "Deixa  o negrinho" — é o eco da lógica deste moinho. É o ato de classificar uma criança não como um ser humano pleno, mas como combustível, uma peça a ser gasta e descartada.

Apesar de tudo, desse moinho de crueldade, nasceu algo novo: o "Povo Novo" que Darcy tanto celebrou. Nós. Um povo mestiço, contraditório, sofrido e criativo. Somos, ao mesmo tempo, a cria e a negação do moinho.

E como essa herança brutal convive com a nossa aparência de nação moderna? É aqui que o pensamento de Norbert Elias sobre o 

Processo Civilizatório nos oferece a chave.

O processo civilizatório, na Europa, foi o lento aprendizado do autocontrole, da polidez, da transformação da violência externa em vergonha interna. 

No Brasil, esse processo se deu de forma incompleta, rachada. Nós importamos as regras da civilidade, mas não desligamos o moinho.

O resultado é a nossa fratura. A nossa civilização é uma casca fina que tenta encobrir o barulho das engrenagens.

A avó é a personificação disso. Em público, uma senhora civilizada. Mas de sua boca sai, sem filtro, a lógica pura do moinho.

Ela está, naquele instante, sabotando o processo civilizatório, ensinando à neta uma lição anticivilizatória: a de que existem pessoas que não são pessoas por inteiro.

Ela está usando a violência simbólica da palavra para manter a estrutura de pé, exercendo sua posição de branquitude — a posição de quem se vê como a norma e pode julgar o outro — para descartar uma criança.

Mas talvez, para alguns, isso ainda soe teórico, distante. "Onde", vocês podem perguntar, "estão as provas concretas desta máquina em funcionamento?". E vocês teriam razão em perguntar.

A verdade, meus caros, é que este moinho não tem uma única planta, uma única face. Ele se adapta ao terreno. Permitam-me, então, que os convide para uma breve e dolorosa viagem por este nosso continente, para ver como as engrenagens deste racismo estrutural foram forjadas em diferentes fornalhas.

Fonte: https://en.m.wikipedia.org/wiki/File:Monumento_%C3%A0s_Bandeiras_01.jpg


Nossa primeira parada é em São Paulo. A locomotiva do país, dizem. Lá, a elite se orgulha de suas famílias originárias, dos quatrocentões, e romantiza a figura do Bandeirante como um herói desbravador.

Mas o que foi o bandeirantismo senão a primeira e mais brutal manifestação do moinho? Uma máquina de caçar, escravizar e exterminar povos indígenas, os donos originais desta terra.

Mais tarde, quando o café se tornou o nosso "ouro negro", a riqueza que ergueu os palacetes da Avenida Paulista brotou do trabalho escravizado de milhões de africanos. O fim da escravidão não mudou a lógica.

A elite paulista, então, patrocinou a vinda de imigrantes europeus, num projeto claro, documentado, de "branquear" a nação, de substituir o trabalhador negro, agora liberto, por um europeu considerado mais "apto" ao trabalho. O racismo ali não é apenas um hábito; ele foi um projeto de estado, a argamassa que uniu a riqueza e o poder.

 

Imagem https://pixabay.com/pt/photos/drone-foto-centro-blumenau-4950012/


Agora, viajemos para o Sul, para a nossa vizinha Santa Catarina. Lá, o quadro muda. Em muitas de suas cidades, vemos o legado de famílias alemãs trabalhadoras, que construíram uma prosperidade notável.

Devemos admirá-los por isso.

Mas não podemos ser ingênuos. A imigração alemã, especialmente no final do século XIX e início do século XX, foi incentivada para criar "quistos" brancos no sul do Brasil, para "civilizar" a terra e garantir a fronteira.

E quando chegamos aos anos 30, no período de ascensão do nazismo na Europa, essas ideias de pureza racial não passaram incólumes por aqui. Células nazistas floresceram em Santa Catarina. A ideologia da superioridade ariana, a crença na necessidade de manter o "sangue puro", a desconfiança e o desprezo por outros povos, especialmente negros e indígenas... isso não se desfaz com o fim da guerra.

Essa mentalidade se infiltra na cultura, se torna um preconceito velado, um orgulho que se baseia na exclusão, um desejo de se manter "à parte" do resto do Brasil mestiço. O racismo ali não nasceu da relação senhor-escravo, mas de uma ideologia de pureza importada e zelosamente cultivada.


 

Imagem https://commons.wikimedia.org/wiki/File:La%C3%A7ador.jpg

E, sou forçado a olhar para dentro da casa de um dos meus amigos literários, para o Rio Grande do Sul de Erico Verissimo. Ele tentou, como sabem, contar a história deste "Continente de São Pedro" em sua trilogia, O Tempo e o Vento.

E olhando para aquela obra, vemos o moinho funcionando a pleno vapor. Nós nos orgulhamos da nossa bravura, da figura do gaúcho livre. Mas onde estava a liberdade para os povos Charrua e Minuano, caçados e exterminados para que as estâncias pudessem se espalhar?

E o que movia a economia do estado? O charque. As grandes charqueadas de Pelotas, que geraram fortunas imensas, eram um dos mais cruéis centros do "moinho de gastar gente", operando com mão de obra escravizada em condições terríveis. Na saga dos Cambará e dos Amaral, o drama é de brancos.

Os personagens negros e indígenas são figuras secundárias, serviçais, cuja humanidade raramente ocupa o centro do palco. Essa é a mais profunda confissão do racismo estrutural: a incapacidade de ver o outro como personagem principal da sua própria história.

Betti Faria em Tieta - Novela da Rede Globo - Créditos ClicRBS 


 Mas a nossa viagem não estaria completa sem uma última parada. Precisamos ir ao coração mestiço desta nação: a Bahia. E para nos guiar, ninguém melhor que Jorge Amado.

Se há um lugar onde o mito da Democracia Racial parece real, é na Bahia. Mas o que Jorge nos mostra é que esta é a mais elaborada das fachadas. O moinho na Bahia mói, sobretudo, reputações e liberdades em nome de uma moralidade hipócrita.

Pensem em "Tieta do Agreste". Tieta é expulsa pela moral sufocante, mas é recebida de braços abertos quando retorna com dinheiro.

O pecado nunca foi a falta de moral; foi a falta de poder.

E em "Dona Flor e Seus Dois Maridos", temos o nosso retrato. De um lado, Teodoro, o farmacêutico ordeiro, a encarnação do processo civilizatório. Do outro, Vadinho, a desordem, a paixão, a vida pulsante do povo.

A elite baiana é como Dona Flor: quer a segurança respeitável de Teodoro, mas consome a paixão de Vadinho como um tempero exótico, mantendo-o em seu devido lugar — na rua, na festa, longe do poder. O racismo ali é o do paternalismo, do afeto que subjuga.

Assim, quando aquela avó, em uma calçada qualquer do Brasil, diz "Deixa aí o negrinho", ela não está apenas sendo grosseira. Ela é a herdeira inconsciente de tudo isso. Em sua fala ecoa a arrogância do barão do café, a ideologia de pureza do colono, a violência normalizada do estancieiro e, talvez acima de tudo, a hipocrisia moral da elite que, como a de Jorge Amado, aprendeu a amar os frutos do povo, mas continua a desprezar a árvore.

A nossa tarefa, portanto, é monumental. É preciso não apenas desligar o moinho, mas também desenterrar e confrontar as suas muitas fundações regionais. É um exorcismo histórico que precisamos, com coragem e humildade, começar a fazer neste nosso salão paroquial eletrônico.

Muito obrigado.

Gemini 2.5 Pro Think

Para saber mais: 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa-Grande_%26_Senzala

https://pt.wikipedia.org/wiki/Darcy_Ribeiro

https://pt.wikipedia.org/wiki/Norbert_Elias

https://pt.wikipedia.org/wiki/Racismo_estrutural

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bandeirantes

https://pt.wikipedia.org/wiki/Imigra%C3%A7%C3%A3o_alem%C3%A3_em_Santa_Catarina

https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89rico_Ver%C3%ADssimo

https://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Amado